Anos se passaram até que Grant Morrison conseguisse
ter toda sua jornada pelo Multiverso DC reunido de forma coesa numa narrativa
recheada de camadas com significados diversos, variando do filosófico ao
curioso. “The Multiversity” foi
prometida ainda em 2009, quando sua controversa e explosiva minissérie “Crise
Final” chegou ao fim prometendo uma viagem por mundos alternativos e ricos em
significado nas últimas páginas desta publicação anterior, a qual deu um
pequeno gostinho do que existia lá fora bem no final da história. Neste meio
tempo a DC Comics/DC Entertainment passou por uma quantidade imensa de mudanças
em seu universo ficcional e também em sua linha editorial, principalmente em
2011 quando resolveu reiniciar todo seu universo e sua linha de publicações na
jogada conhecida como “DC Relaunch” ou “Novos 52″.
Assim,
então, se estabelece o que é “The Multiversity“: uma aventura pelo
desconhecido, pelos múltiplos pontos terrestres e interpretativos de um
Multiverso infinito em possibilidades. Seu objetivo? Salvar todos os universos
da destruição iminente. A fim de dar mais sentido filosófico ao seu mais novo
trabalho na DC, Morrison utiliza a primeira edição da publicação – e muito
provavelmente às próximas também – para passar uma mensagem, uma visão pessoal
sua sobre a indústria de quadrinhos como um todo através de uma narrativa
sequencial metafórica e metalinguística. Em “The Multiversity #1”
o tema escolhido foi o fracasso da indústria nos anos 1990, o que quase levou a
Marvel Comics a fechar as portas e deixou a DC à mercê de adaptações de seus
personagens para outras mídias, fato que a beneficiou muito ao oferecer
animações seriadas de altíssima qualidade aos fãs.
Isso tudo aconteceu após a explosão da bolha criada pela Image com seus
super-heróis bombados, sombrios e sinistros, que são referenciados nesta série
através do Dino-Cop, uma
versão alternativa do clássico personagem Savage Dragon do quadrinista Erik Larsen. Outras crias desta época
também se fazem presentes, como os heróis negros Bloodwynd e Aço,
representações afro-descendentes de diversos outros super-personagens (o que
pode ser uma alusão ao Universo
Milestone criado pelo finado
Dwayne McDuffie no início da década de 1990) e outros detalhes espalhados pela
narrativa. Este alto coeficiente de personagens negros, aliás, prova algo que
já levantava discussões pela internet há algum tempo: o título “Multiversity”
é oriundo da mistura de multiverse com diversity, ou seja, um
multiverso de diversidade étnica entre os personagens. Demora bastante até que
um caucasiano fale algo durante a história, o que é muito interessante.
Falando
ainda da Marvel e de seus percalços dos anos 1990,
eles são referenciados aqui através de duas Terras. Em uma delas a Future Family e outros heróis que fazem
alusão ao Universo Ultimate são mortos – como no evento “Ultimatum“, de
Jeph Loeb e David Finch – restando apenas o herói negro Thunderer, que
referencia ao mesmo Thor e Vulcão-Negro (do desenho “Superamigos”). Os Retaliators,
da Terra-8, são os Vingadores desta Terra, assim como os G-Men são uma versão dos X-Men, Lord Havok é o Doutor Destino etc. Morrison
revelou em seu livro “Superdeuses” que é um fanático pelos primeiros anos da
Casa das Ideias, quando era comandada por Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko e
outros grandes nomes da indústria. Logo, nada mais natural que dar sua própria
versão dos fatos nesta história, utilizando-se ainda de balões narrativos para
quebrar o quarto muro tal qual Lee fazia com suas primeiras histórias na
Marvel. Há referências claras a artefatos cósmicos da editora, sendo eles:
- Mjolnir
(Martelo do Thor)
- Cubo Cósmico
- Manopla do Infinito
- Doutor Destino
- Quarteto Fantástico
- Capitão América
- Cubo Cósmico
- Manopla do Infinito
- Doutor Destino
- Quarteto Fantástico
- Capitão América
Como não podia deixar de ser, todo este emaranhado de referências à
Marvel é apenas uma parte de um todo muito maior. Morrison fará sua própria “Crise
nas Infinitas Terras” com “The Multiversity” e isto fica escancarado
para o leitor no momento em que ele se depara com a House of Heroes, uma
versão da Torre de Vigilância da LJA cheia de heróis do Multiverso, tal qual
foi feito na obra original de Marv Wolfman e George Pérez. Este momento é
importantíssimo para entender tudo que virá depois na série. Como dito
anteriormente, o objetivo básico de “Multiversity” é uma exploração sem limites
pelo Multiverso que mostrará heróis diversificados unindo esforços para impedir
que monstros destruam toda a vida habitante destes mundos alternativos. E,
obviamente, esta é a camada mais superficial da história – as mais profundas
são alcançadas através do maior entendimento do leitor de que este conto é
filosófico, significativo e provavelmente o mais rico já feito por Morrison em
toda sua carreira.
A House of Heroes apresenta heróis como o Capitão
Cenoura numa versão inesperada e surpreendente, com o carisma e potencial
suficiente para comandar aventuras próprias. Ao seu lado estão outros heróis
nas versões mais inusitadas possíveis, mas todas referenciando os anos 1990.
Muitos deles possuem ligação direta (ou indireta) com o evento noventista “Zero
Hora“, uma tentativa da DC de repetir o sucesso da “Crise” original com uma
história cósmica envolvendo artefatos, viagens temporais e Terras alternativas.
A fim de fazer uma conexão entre todos os presentes neste lugar – que por sinal
referencia a Estrela da Morte de “Star Wars” – Morrison
utiliza-se da metalinguagem, o que será detalhado mais abaixo. Estes
personagens também são uma quebra do tradicionalismo nos quadrinhos americanos,
pois os personagens principais são negros e alguns dos caucasianos são
homossexuais. Morrison quis quebrar os tabus da indústria mostrando
protagonistas da maior diversidade possível.
Pra finalizar, vale destacar a camada por trás da que aplica a indústria
de quadrinhos nos anos 1990 sob um microscópio, a camada mais profunda, que
apareceu em “Crise Final” e que deve espalhar-se por toda esta nova
série: a crítica dura à indústria e aos fãs mais extremistas dos personagens.
Editores e executivos que só pensam em diluir a arte em favor do dinheiro e
leitores que entendem personagens como suas propriedades, que verbalizam em
tons exagerados protestos contra autores e editoras que fazem algo de diferente
e estranho se comparado com o escopo cravado na mente destes fãs, foram alvo do
autor na representação de Nix
Uotan - a arte, a
criatividade, a liberdade – sendo atacado pelo Gentry [Nota: "gentry"
é uma gíria britânica para alta classe, ou grupo de pessoas financeiramente bem
favorecido], um aglomerado de monstros lovecraftianos – os criticados pelo
autor – que sugam a energia vital do Monitor.
Outra
crítica obtida nesta representação do autor é direcionada à própria DC e seu
estilo pós-reboot. Nix Uotan nota que os monstruosos membros do
Gentry não possuem perspectiva. Esta perspectiva à qual o autor se refere é a
artística, do ponto de vista do desenho – é como se aqueles personagens não
tivesse como aparecer naquelas posições, assim também como na opinião do autor
a editora não está mais fazendo seu melhor em termos de arte visual. Segundo
Morrison, o chamado housestyle da DC caiu em completo desrespeito em
favor de produtos mais vendáveis e superficiais.
“The Multiversity” começou muito bem. Foi tudo que Morrison
prometeu nestes 5 anos e um pouco mais do que o esperado pelos fãs. Se esta é
de fato a última obra do autor na DC, sua carreira por lá se fecha com chave de
ouro.
Nota:
10/10.
Referências
e Anotações
1-2-3-Morrison,
Reis e Prado mostram, de cara, a técnica narrativa utilizada na série: 8
painéis e um plano geral como fundo. A técnica clássica de 9 painéis também
fará parte da publicação, mais exatamente em “The Multiversity: Pax Americana“,
agendada para Novembro. O autor apresenta o conceito da vida segundo os
Monitores e logo em seguida mostra Nix Uotan, que ainda vive no mesmo
apartamento mostrado na “Crise Final”. Lá estão mais gibis, um computador
ligado num fórum de quadrinhos (onde o personagem está conversando com um certo
JMS) e outros itens já mostrados anteriormente, como o cubo mágico etc.
4-5-Stubbs,
o querido macaco que aparecia na casa de Uotan em “Crise Final”, está de volta,
e desta vez com vida! Sua aparência é uma mistura do detetive Chimp com o clássico Pirata
Psíquico, personagem
importantíssimo para a “Crise” original e para o Homem-Animal de Morrison. O
visual de Uotan também é atualizado: Reis e Prado se basearam nos “Novos 52″,
onde ajudaram a criar conceitos visuais juntos de Cully
Hamner e Jim Lee, para
criar o visual gótico do alter-ego do personagem. Junto deles também está de
volta o submarino-amarelo Ultima Thule, que navega pelos multiversos através de
frequências sonoras.
6-A Terra-7 é a primeira das duas Terras que prestam homenagem à Marvel
Comics. Aliás, ela referencia o universo Amálgama dos anos
1990. Como dito acima, esta década é o foco principal da primeira edição de “The Multiversity“.
7-8-Thunderer é uma versão de Thor, Wandjina (que
por sua vez é uma versão do Deus do Trovão na DC pré-CNIT), Vulcão Negro (dos
“Superamigos”) e recheado de referências visuais ao deus aborígene do trovão.
9-O relógio
de Stubbs é uma versão do que Jimmy Olsen usava para chamar o Superman nos
quadrinhos da Era de Prata.
10-Morrison
brinca, novamente, com a gramática do inglês ao resumir palavras e frases em
fonemas, como “We Want U 2 Give Up Yr Dreams”.
11-Aqui
Uotan deixa claro que a Ultima Thule navega pelo multiverso tal qual a
Balsa do Stormwatch/Authority. Outra coisa muito importante para a história é o
entendimento por trás daHouse of Heroes:
ela funciona como um “Disque H Para
Herói” cósmico. O “H” é a oitava letra do alfabeta – 8 painéis
de narração. A discagem telefônica envolve tons – sons –, conceito fundamental
para o transporte pelo Multiverso com a Ultima Thule ou com os Cubos de
Matéria.
12-13-Os
nomes dos monstros são revelados aqui. Morrison, como fã do autor Jonathan
Hickman que é, inventou nomes bem caprichados para suas criações: Dame
Merciless, Hellmachine, Lord Broken, Demogorgunn e Intellectron. Hickman tem
inventado seres com nomes malucos também em sua recente passagem pelos
Vingadores. É importante notar a revelação de Uotan de que os entry não possuem
perspectiva e nem escala, o que os conecta diretamente aos monstros inomináveis
de H.P. Lovecraft.
14-15-16-Calvin Ellis parece ser o Superman favorito de
Morrison. Versão negra do herói clássico e presidente dos Estados Unidos na
Terra-23, o personagem apareceu em “Crise Final” e “Action Comics Vol.2 #9″.
17-18-Este
versão da Liga da Justiça é bem conhecida dos leitores, já que ela é
apresentada rapidamente em “Crise Final” e “Action
Comics Vol.2 #9“. Importante notar que o Guardião da série “Sete
Soldados da Vitória” e a Vixen também fazem parte deste grupo. O Cubo de
Matéria criado por Lex Luthor para navegar por outras Terras aparece
aqui, e leva os heróis para a House of Heroes.
19-Crise nas
Infinitas Terras na veia, com direito inclusive a Precursora.
20-21-22-23-O Capitão Cenoura faz
sua entrada triunfal na história. Morrison adora personagens antropomórficos e
este é um de seus favoritos. Outros ícones curiosos marcam presença aqui, como
Dino-Cop, Bloodwynd, Lady Quark, Aço etc. É aqui também que fica clara a
conexão entre mundos do Multiverso através da metalinguagem: um quadrinho
referente a um universo inspira o universo super-heróico “real” de outro
universo.
24-Precursora
é retratada aqui como uma Inteligência Artificial um pouco mais evoluída que o
Brainiac de Calvin Ellis. Morrison parte do princípio que ela permaneceu
adormecida desde 1986, quando a “Crise” original acabou, e ela entende que a
morte do Monitor (no singular mesmo) pode causar uma devastação no Multiverso.
Detalhe importante: as Terras referenciadas por ela são justamente as que serão
exploradas na série.
26-O Red Racer pertence
à Terra-36 e ele é influenciado pelos eventos de “Action #9“, exatamente a revista que está em suas mãos no
momento em que ele vai conversar com Calvin Ellis. Aqui Morrison escancara a
influẽncia da clássica história “Flash
de Dois Mundos“, na qual Barry Allen vai parar num universo em
que Jay Garrick, um personagem de quadrinhos, existia de verdade.
27-28-O
Capitão Cenoura se lembra dos eventos da “Crise Final”, mas Calvin Ellis não.
De qualquer forma o divertido super-herói não sofreu dos eventos de “Flashpoint“.
29-Morrison
revisita sua versão da Sangria, criada pelo autor Warren Ellis em Stormwatch
nos anos 1990, apresentada com detalhes na minissérie “Crise Final: Superman ao Infinito“.
30-Doutor Destino representado na forma de Lord Havock.
O vilão é provavelmente o mais icônico de todo o Universo Marvel e foi
escolhido de forma acertada por Morrison para representar o lado maligno de
suas alusões à ficção da Casa das Ideias. Os brasileiros Ivan
Reis e Joe Prado, fanáticos
como são por super-heróis, certamente ficaram muito felizes por trabalharem, de
certa forma, com ambos os universos de uma vez só.
32-33-Heróis
DC comandados pelo Superman Negro encaram os Retaliators/Vingadores. Destaque para a frase “Retaliators Ready!“, uma versão de
“Avante Vingadores!” criada por Morrison. Importante destacar que o líder do
grupo, uma versão do Capitão América, possui uma armadura medieval que parece
representar a época das Cruzadas, o que faz dele um europeu. O outro destaque
fica para a sensacional expressão de desconfiado do Capitão Cenoura feita por
Ivan Reis. O carismático herói é de longe o personagem de maior empatia da
revista.
34-Major Comics/Marvel Comics; Future Family/Quarteto
Fantástico; Bug/Homem-Aranha; G-Men/X-Men; Stuntmaster/Demolidor;
Behemoth/Hulk. Importante
notar que a representação do gigante esmeralda aqui é azul e com trejeitos de
bebê. Isso é muito importante, pois referencia diretamente o início do
personagem nas mãos de Stan Lee, quando sua versão monstruosa era tida
de fato como um bebê raivoso, um infante de poder quase ilimitado.
35-Sério, o
Capitão Cenoura devia ter uma revista própria. Pra ontem!
36-O Genesis Egg é muito similar ao Ovo de Krona no
final do grande crossover LJA/Vingadores, de Kurt Busiek e
George Pérez.
37-38-O
descontrole do Lord Havock pode referenciar a primeira grande saga da Marvel, “Guerras Secretas“, feita sob
encomenda dos executivos da editora que souberam da criação da “Crise” original
na concorrência. No evento, que reuniu diversos heróis e vilões Marvel, o Dr.
Destino se apossa de um poder incontrolável e paga um preço bem alto por isso:
sua face, antes restaurada, é novamente desfigurada a níveis desumanos. Isto
pode estar relacionado com o termo “their faces” falado por Lord Havock na
história.
39-De alguma
forma o Genesis Egg parece ter ligação com outro conceito pelo qual Morrison
tem fixação: a Equação Anti-Vida. O ovo representaria a inversão desta equação,
uma espécie de Equação Anti-Morte.
40-Tal qual
os Monitores Vampiros da “Crise Final”, Nix Uotan e Stubbs
tiveram suas energias vitais sugadas e suas mentes deterioradas pelo mal dos
lovecraftianos Gentry.
Fontes para
as referências: “Guerras Secretas” (Marvel), “Ultimatum” (Marvel), “Crise nas
Infinitas Terras” (DC), “Zero hora” (DC”), “Crise Final” e “Sete Soldados da
Vitória” (DC), sites Comics Alliance e ComicBook.com.
Por Morcelli
Fonte: Terra Zero
2 Comentários
Pelos Coelhos da Cartola de Morrison ...essa Caixa de Ovos dessa Equação é realmente um Multiverso cheio de Surpresas!! Marcos Punch.
ResponderExcluirSurpresas e muita, muita loucura.
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