Escrita pelo roteirista da aclamada minissérie “Loki” (recentemente
republicada em um bem-vindo encadernado de capa dura), Thor: Por Asgard tem
tudo para agradar em cheio aos fãs de fantasia, RPG, thrillers políticos e
“Lost”. Confuso? Explico.
A história começa com Thor conduzindo guerreiros
asgardianos em uma batalha para “reduzir Jutunheim a pó”. O deus do trovão,
porém, hesita ao perceber que os famigerados Gigantes de Gelo utilizaram
mulheres e crianças como escudo humano. A hesitação não dura muito, e logo Thor
toma uma decisão drástica: atacar impiedosamente, mesmo que o efeito colateral
seja a morte de alguns inocentes. O início é emblemático, e mostra logo de cara
algo importante para se entender a história: esse não é o Thor a que estamos
acostumados nas aventuras tradicionais do Universo Marvel. Embora o filho de
Odin explique que deixar de atacar poderia incentivar outros inimigos a
utilizar tática semelhante, a vitória deixa um gosto amargo nos asgardianos.
Diferentemente dos costumeiros festejos após a batalha, os guerreiros retornam
para casa amargurados, exaustos e sem orgulho do que fizeram.
Ao chegar a Asgard, entendemos que a Cidade Dourada já não é tão
reluzente. Um inverno se abateu há mais de dois anos e toda a paisagem é
coberta pelo frio e pelo gelo. A fome começa a assolar os moradores da cidade,
o que só é agravado pelo clima de rebelião que começa a tomar conta do reino.
Reino que agora é regido por Thor, pois Odin foi vagar por Midgard (Terra) para
descobrir a causa do inverno, e Balder (o regente por excelência) foi
assassinado traiçoeiramente por Loki (cujo paradeiro é desconhecido). Mas mesmo
a autoridade de Thor vai sendo minada aos poucos, pois há uma ruptura se
formando na cidade, representada por Tyr (promovido a homem de confiança de
Thor no lugar de Balder) e Sif (que funciona como contraponto na história). O
primeiro acredita na solução pela força, enquanto a segunda representa a busca
pela diplomacia e o inevitável peso burocrático de gerir um império. Como
desgraça pouca é bobagem, Thor ainda recebe a notícia de que o inverno impediu
o crescimento dos frutos dourados que concedem aos deuses sua imortalidade, o
que nada menos é do que um presságio do Ragnarok (o apocalipse nórdico com o
qual os fãs de RPG já estão acostumados). Ao final da primeira edição, a
história deixa claro que as coisas não são nada boas mesmo: Thor já não
consegue sequer erguer o Mjolnir, o que indica que ele não é digno do papel que
atualmente ocupa.
Nesse clima de pessimismo constante, Rodi conseguiu desenvolver uma
história bastante adulta e contemporânea, com uma abordagem mais crítica à
mitologia que a Marvel transformou em aventuras de super-heróis. A crítica,
porém, não está nas origens do mito, mas sim na analogia que Rodi faz com o
mundo moderno. Na história, Asgard é mostrada como a capital de um império que
subjuga os nove mundos através da força, justificando tais atos com a desculpa
de beneficiar os conquistados ao lhes trazer a arte, a música, a cultura e,
enfim, seu modo de vida asgardiano. Mas, com Asgard enfraquecida pelo inverno e
por suas disputas internas, todos os mundos (inclusive Hel) rebelam-se contra
ela, dividindo os exércitos da cidade, privando-a de seus guerreiros, e causando
a ira dos cidadãos famintos e cansados de ver seus governantes perderem tempo
em guerras distantes. Posso estar voando muito mais alto do que a história
permite, mas não pude deixar de notar as semelhanças com a realidade da “cidade
dourada” dos dias de hoje, os Estados Unidos. É difícil mesmo ignorar a
comparação entre o inverno “dos últimos dois anos” e a crise econômica
deflagrada em 2008 nos EUA (a minissérie saiu lá fora em 2010), entre as
batalhas em mundos distantes e como os americanos ficaram enfraquecidos após
dividir seu exército entre Afeganistão e Iraque, ou ainda as semelhanças
explícitas entre o expansionismo asgardiano e o imperialismo americano do
século XX (ambos justificados pela noção arcaica de “destino manifesto”). Oras,
Rodi colocou até mesmo um homem-bomba cometendo um ataque suicida num marco
importante da cidade. Não dá pra ficar mais óbvio que isso, e aí está o agrado
aos fãs de uma boa intriga política.
Se o roteiro de Rodi é interessante, a arte de Simone Bianchi não fica
por menos. Bianchi é um artista habilidoso, com influências clássicas
(clássicas mesmo, renascentistas até), que consegue dar profundidade à figura
humana, explorar ângulos pouco utilizados e desenhar Thor em todas as poses
épicas possíveis. Como todo artista virtuoso, Bianchi ousa também na construção
de páginas, sobrepondo quadros e desenhos de maneira longe da tradicional.
Isso, porém, atrapalha um pouco a narrativa. Por vezes a ação fica confusa e
alguns estranhos espaços em branco surgem na página, como se a calha (aquele
“vazio” que separa os quadros nas HQs) fosse colocada deformada no meio do
desenho. Sem o compromisso de acompanhar a narrativa, os desenhos de Bianchi
seriam fantásticos (as capas e as splash pages são lindas), mas uma composição
mais convencional dos quadros teria valorizado mais o bom roteiro de Rodi. Me
incomodou também o excesso de closes, já que Bianchi foca mais na figura humana
do que nos cenários. Em alguns momentos o busto dos personagens preenche as
páginas e não sobra muito espaço para mostrar o que está acontecendo ao redor.
De qualquer forma, a ambientação, os figurinos e os designs de personagens
criados por Bianchi dão um charme de fantasia medieval à edição, quase como se
você estivesse lendo uma esmerada história em quadrinhos de World of Warcraft.
Pode desagradar aos fãs do Thor de Walt Simonson ou Oliver Copiel, mas com
certeza tem seu público. Para encerrar sobre a arte, cabe aqui a menção honrosa
às belíssimas cores de Simone Peruzzi, que acerta nos tons para preencher o
lápis de Bianchi e retratar o clima sombrio que se abate sobre Asgard.
Já a edição brasileira também é digna de nota. Trabalho primoroso de
capa, acabamento interno, letras, e material extra. Tanto capricho justifica um
pouco o valor cobrado pela edição, mas o preço ainda é meio salgado,
especialmente se considerarmos que não é uma história lá muito consagrada do
deus do trovão. Ainda assim, a Panini acertou ao trazer essa edição para fazer
par com a já citada republicação da minissérie “Loki”.
Ah, faltou explicar como a história agrada aos fãs de “Lost”, certo?
Bom, sem dar muitos spoilers, cabe alertar ao leitor que a edição termina com
um gancho para uma possível sequência (até o momento não anunciada). Aliás,
gancho não, um guindaste inteiro. Quando a minissérie terminou de ser publicada
lá fora as pessoas devem ter se perguntado se haveria uma sétima edição secreta
ou coisa assim, já que quase todos os problemas e situações criados na história
não se resolvem no final. Nada é explicado. A história não conta para o leitor
a origem do infortúnio de Asgard, as enigmáticas visões que Thor tem de Balder,
as epifanias de Odin e do próprio Thor, e muito menos a identidade do antagonista
que se revela nas últimas páginas.
Asgard ainda está em guerra com os povos conquistados e Odin sai do seu
paradeiro atual para ir buscar sabe-se lá o que e sabe-se lá onde. A única
conclusão que você vai encontrar é para o drama do Mjolnir, que finalmente é
erguido por Thor ao final da edição (provando ser um líder digno). Todavia, com
tantas pontas deixadas soltas, e sem a perspectiva de uma continuação em breve,
fica a sensação de que você acabou de ler seis edições (da minissérie original)
e não chegou a lugar nenhum. Mais ou menos como foram as seis temporadas de
“Lost”, saca? Se você é da turma que se contentou com o final de “Lost”, talvez
se contente com esse final também.
Por Vitor Azambuja
Fonte: Quadrim
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