O filme
Deadpool surpreendeu nas bilheterias, especialmente por ser destinado ao público
adulto. E com a excelente recepção de Logan, nosso colaborador Giulianno de
Lima Liberalli achou que seria uma boa hora de refletir sobre, o que parece ser
uma tendência mundial nos filmes de heróis. - Roger
O mito do super-herói vem das lendas e aventuras da
antiguidade, do homem transpondo barreiras, se tornando herói quase ao custo de
sua vida e esse caminho sempre foi marcado pela dor, pela perda e pela
violência, principalmente se formos buscar as fontes nas sagas dos deuses e
semideuses da mitologia grega tendo Hércules como um dos melhores
exemplos e um dos principais elementos que formam essas narrativas são os
embates entre os heróis e seus antagonistas, sempre carregando a marca da
violência, que também se reflete no mundo dos heróis das HQs.
Desde que Logan, a despedida de Hugh
Jackman do papel que consagrou sua carreira, chegou aos cinemas atingindo o
status de melhor filme da franquia do mutante mais querido e barra-pesada dos
quadrinhos, muito se falou sobre a violência usada na produção e ficou claro
desde que o primeiro trailer saiu que este seria um filme visceral, sangrento e
fiel à descrição mais famosa sobre Wolverine: “Sou melhor no que faço,
mas o que eu faço melhor não é nada agradável.”, a frase dita pelo
próprio personagem pela primeira vez na icônica mini “Eu, Wolverine”,
de Chris Claremont e Frank Miller, ficou gravada na mente dos leitores fãs do
mutante canadense para sempre, se duvida pergunte a qualquer fã do personagem e
ele vai ter essa frase na ponta da língua.
Tendo como inspiração a HQ “Velho Logan”, escrita
por Mark Millar e desenhada por Steve McNiven, o filme retrata um futuro em que
os X-Men estão mortos, não só eles como a grande população mutante mostrada nos
filmes anteriores da franquia estão reduzidos a quase nada e, em décadas, não é
registrado o nascimento de um mutante sequer no planeta. Cabe a um envelhecido
Wolverine sobreviver cuidando de um decrépito Professor X, cuja velhice
representa um risco para o mundo, como se sabe o cérebro é um dos órgãos que
fica mais frágil e instável quando envelhecemos, transporte isso para a imagem
de Charles Xavier, o telepata mais poderoso que existe para se ter uma ideia do
risco em que ele pode se tornar. Para quem leu a HQ e viu o filme entendeu que
muita coisa foi adaptada para a produção, já que os quadrinhos falam de todo o
Universo Marvel devastado após um ataque sincronizado de todos os supervilões,
como ficaram os heróis depois disso e o filme tem seu foco somente no universo
mutante e em Wolverine, centrando a narrativa no velho mutante.
Temos o filme mais “real” das franquias X-Men e
Wolverine até hoje desde o sucesso de X-Men 2, o tema central das
produções era o preconceito, o medo da humanidade em aceitar a existência dos
mutantes e que eles eram o próximo passo evolutivo da raça humana, eles foram
alvo de experiências e perseguições, tratados como aberrações e não como
maravilhas, em Logan vemos o quanto esse medo levou a humanidade
a tratar os mutantes como cobaias cuja única serventia era para serem
estudados, dominados e tornados instrumentos para a eterna ambição humana. Hugh
Jackman se despede da franquia colocando toda a força e dedicação na
atuação que esse trabalho merece, o diretor James Mangold tirou do ator
a sua melhor interpretação para o Wolverine até hoje, dá para sentir que foi
trabalhado para marcar a despedida com chave-de-ouro. Nada assim digno de um
Oscar de melhor ator, se bem que para mim o Oscar não pesa em nada, mas mereceu
um emocionante reconhecimento por parte dos fãs que sempre criticaram por não
verem o Wolverine com toda sua grandeza nas telas, percebe-se a dor de estar
perdendo a capacidade de regeneração, dos poderes estarem cobrando o preço por
anos e anos de utilização consumindo suas forças, uma atuação bastante
convincente, dá para sentir a empatia de ver um guerreiro que ainda teima
em permanecer de pé, que ainda quer lutar, quando seu corpo pede para parar e
se entregar. Patrick Stewart, que sempre admirei como ator e
personalidade, mostra por que ele foi a melhor escolha para o Professor X, sua
atuação também emociona, não dá para ficar indiferente com o quanto ele mostra
que a idade bateu com força e o desespero por estar perdendo a guerra contra a
velhice e a decrepitude mesmo possuindo o cérebro mais poderoso do planeta não
podendo fazer nada para impedir o fim que se aproxima, a química que os dois
mostraram juntos ao longo dos filmes desde o primeiro X-Men em 2000 atinge seu
ápice dezessete anos depois nesse capítulo final para seus personagens. Fora a
sensacional revelação que é a atriz mirim Dafne Keen como X-23, ela
passa a maior parte do filme em silêncio, usando de gestos e expressões para
atuar e aí está a força do talento promissor que ela mostrou, se apresentando
como uma das maiores promessas artísticas que veremos em alguns anos no cinema,
desde que não se corrompa pela indústria e caia na banalidade de papéis que só
farão desmerecer sua capacidade, suas cenas de luta são sensacionais e é melhor
ainda contracenando com Jackman. Enfim, o filme é muito, muito bom.
Chegamos à outra característica altamente enfatizada
e presente na produção: a natureza violenta de Wolverine, dessa vez mostrada
como nunca foi em nenhum dos filmes anteriores, até mesmo em X-Men 2
que nos deu um gosto de sua selvageria ou em X-Men: Apocalipse,
quando ele chacina um grupo de guardas do Projeto Arma X em uma participação
bem pequena do baixinho canadense. Um fenômeno interessante dos quadrinhos
acabou se repetindo nos filmes mutantes, tirando Deadpool, que
foi o quanto a presença de Wolverine pesa nas histórias praticamente carregando
a saga dos filmes nas costas, o carcaju está com tudo mesmo. Só que os fãs do
personagem nunca tiveram a chance de ver os estragos que ele pode fazer na
carne dos inimigos, até Logan estrear, gostaria de deixar claro que não sou
simpatizante da violência ainda mais por se tratar de filmes de super-heróis
cuja fatia de público mais grossa é justamente composta pelos jovens,
adolescentes e produções como Homem-Aranha, Vingadores
e Guardiões da Galáxia provaram que nem sempre precisamos ver
sangue voando ou membros serem arrancados para gostarmos da aventura nas telas,
só que Wolverine é um personagem calcado na violência, tudo nele e na sua
história gira em torno disso, afinal seu corpo é uma arma quase perfeita, pode
se regenerar e possui garras feitas de um metal que corta qualquer coisa, se
transportarem isso para o mundo real esses poderes nas mãos de um homicida
fariam um estrago imenso, quase incontrolável. Então essa carga de violência
foi importante para o filme? Acredito que sim, senão o espectador não teria
visto o verdadeiro Wolverine que conhecemos em sagas como “Velho Logan”
e “Eu, Wolverine” agir de verdade, para o roteiro ter mais
profundidade foi necessário, afinal estamos vendo o personagem cansado,
irritado, com os nervos à flor da pele, pronto para explodir e podemos ver a
intensidade dessa explosão quando ele demonstra que o tempo do diálogo,
infelizmente, ficou para trás, em seus tempos de equipe ao lado dos
companheiros mutantes e agora ele bate de frente com o mundo e com qualquer um,
sem piedade.
Mas como eu disse no inicio do texto, a violência
presente no filme nos faz perceber que
temos reações diferentes ao lermos
quadrinhos violentos e assistirmos produções violentas, possivelmente tem
pessoas que leram a fase do Justiceiro de Garth Ennis e Steve Dillon,
uma das mais sangrentas do personagem, e ficaram meio incomodadas com Justiceiro
Em Zona de Guerra, último filme com Ray Stevenson no papel de Frank
Castle, devido a não terem poupado a truculência do Justiceiro para as telas,
mostrando que ele não pensa duas vezes em mutilar e arrebentar friamente um
bandido para fazer sua justiça, só que essa é a natureza do vigilante nas HQs e
como ele temos Wolverine, Deadpool, Elektra, Kick-Ass, Vigilante, Rorschach,
Comediante e vários outros. Em uma escala um pouco menor temos o Batman, que já
teve histórias mais carregadas na violência como “Cavaleiro das Trevas”, a
maturidade e o clima sombrio que Frank Miller deu para o universo de Batman
nessa obra foi um dos fatores que o colocaram novamente em evidência nas HQs,
tirando o personagem do meio comum dos outros heróis para o mundo dos
vigilantes, mais real, mais doloroso e a sua popularidade tornou a aumentar
chamando a atenção do público mais maduro para as HQs, a trilogia do personagem
pelas mãos de Christopher Nolan soube dosar a violência com a trama para
fazer uma saga de filmes excelentes que não precisaram ser escuros ou gore
visualmente para retratar o Batman, Coringa, Duas-Caras e Gotham City de
maneira convincente e empolgante. Nos quadrinhos temos os selos que tratam de
temas adultos como Marvel Knights e Vertigo, sagas que ficaram
populares por serem destinadas aos leitores maiores de idade e por terem cenas
bastante violentas como Preacher e Escalpo, as
aventuras do pastor Jesse Custer foram adaptadas para uma série pela emissora
AMC e não poupou sangue, palavrões e situações que não seriam nada “santas”
para a vida de um pastor, uma prova de que muitos escritores não poupam nem
mesmo a religiosidade da violência para contar uma boa história, a série de TV
foi bem sucedida por não deixar de lado as características dos quadrinhos, até
o Cara-de-Cu estava lá bem fiel a HQ, Escalpo também está prestes a
ganhar adaptação, outro exemplo de que os fãs não perdoam a ausência da
essência do personagem em produções desse tipo foi Constantine, o
mago inglês ganhou uma série que só durou uma temporada altamente criticada por
ignorar os quadrinhos da Vertigo que o popularizaram e não retratar com mais
fidelidade o mundo de magia negra e terror em que ele vive, mesmo tendo sido
muito bem interpretado por Matt Ryan, lavando a alma dos fãs depois de Constatine
com Keanu Reeves.
Demolidor, um dos vigilantes mais famosos da Marvel, é um personagem que vive em
um ambiente urbano bastante violento e perdeu entes queridos como o pai para
esse universo aprendendo que nem sempre é com a justiça dos tribunais que se
punem os criminosos. Em “Born Again” podemos ver até onde o
Demolidor e o Rei do Crime podem ser violentos em momentos extremos, quando a
Netflix lançou a série do Homem Sem Medo o fator da violência não ficou de
fora, pelo contrário, ela foi usada diversas vezes sem economia para mostrar
que o mundo é um lugar em que recursos assim, inevitavelmente, são meios usados
para atingir alguns fins e a adaptação se tornou um sucesso que gerou outros
como Luke Cage e Jessica Jones, frutos desse mesmo
mundo violento. Então a tão criticada violência foi um dos fatores
determinantes para o sucesso dessas produções?
Sim, se analisarmos que para ser
algo palpável, empolgante para o espectador tinham que ser o mais próximo
possível de serem histórias com um pé na realidade, mesmo se tratando de histórias
de super-heróis. Para tirar a dúvida é só ver como foi recebido o filme do Demolidor
com Ben Affleck, Jennifer Garner e Collin Farrell pelos fãs. A película, além
de não ser tão fiel ao estilo dos quadrinhos, pecou deixando de lado muitas das
características que marcaram os quadrinhos do Demolidor, principalmente a fase
de Frank Miller considerada uma das melhores do personagem, seu relacionamento
com Elektra e os embates com o Mercenário marcaram época, Miller nos trouxe
histórias dramáticas e violentas sem precisar ser explícito nos quadrinhos,
pois não faziam parte de um selo adulto, só que essa visão fez falta nesse
filme deixando-o raso e pouco empolgante, o Mercenário interpretado por
Collin Farrell não tinha nem a metade do carisma do personagem nos quadrinhos.
Outra obra que se passa em um mundo escuro e violento
recebeu um filme para o cinema que, mesmo com as alterações feitas no material
original, é uma adaptação bastante fiel ao visual original, aqui me refiro a Watchmen
de Alan Moore e Dave Gibbons. A HQ que é um clássico dos quadrinhos modernos
tem uma história sólida e irrepreensível, no entanto já inicia com uma
sequência altamente violenta que é o assassinato do Comediante provando que
aquele que vive pela espada morrerá pela espada, ou seja, o Comediante era
violento desde o seus primórdios e, mesmo assim, ele não deixa de ser um dos
melhores personagens da HQ e peça central na trama, Rorschach é a imagem do
vigilante que admitiu para si que não existem meios de se buscar a justiça se
não forem violentos, duas passagens ficaram marcadas na minha memória na
primeira vez em que li a história: quando ele conta como Kovacs se torna
Rorschach para o psiquiatra na cadeia e quando ele é resgatado na prisão em
meio a um banho de sangue, gostei da violência? Não. Tornou a história mais
impactante e emocionante? Sim. Como acontece com Logan, quem assistiu ao filme Watchmen
viu um material que buscou respeitar o conceito original dos personagens nas
telas. Até mesmo um ser superior como o Dr. Manhattan tem seus momentos
violentos que incomodam o espectador se imaginar uma criatura com poder assim
no mundo real, mas sem esses fatores tanto a HQ como o filme seriam uma
aventura de heróis típica do material recheado de censura e inocência das
décadas de 60 e 70.
Também temos momentos em que a violência retratada
nas telas não casa bem com a imagem do personagem como o recente Superman
dos cinemas interpretado por Henry Cavill, o Homem de Aço sempre representou
para mim o herói que luta pelo bem sem ter que recorrer à violência para
intimidar seus antagonistas e acho que o clima das recentes produções Homem
de Aço e Batman vs Superman não usou desse prisma, minha
opinião deve ter muito a ver com o fato de que considero Superman – O
Filme o melhor já feito para o personagem, o recurso de violência no
filme é quase zero e não deixa de ser um ótimo filme. Acredito que Frank Miller
teve essa mesma imagem em mente quando concebeu o Superman em “Cavaleiro
das Trevas”: o eterno escoteiro que faz de tudo para evitar
derramamento de sangue, os momentos em que ele enfrenta tropas militares
destruindo somente armas e equipamentos, nem tocando nos soldados ou mesmo
enfrentando um Batman que não pensa duas vezes em enfiar sua bota na cara dele
arrancando sangue do kryptoniano. Nem sempre uma produção precisa usar de
violência para tornar seus efeitos melhores ou deixar o filme mais atrativo,
recentemente uma matéria foi divulgada pelo site The Wrap (http://www.thewrap.com/dc-films-r-rated-superhero-movie/)
relatando que a Warner, motivada pelos sucessos de Deadpool e Logan,
está querendo fazer filmes de classificação mais adulta para os heróis da DC
Comics baseada em pesquisas que apontam que o público está aprovando o maior
teor sexual e violento presente nessas produções, só que vemos isso com bom
olhos para personagens como Watchmen, Constantine e
Batman, este último teve cenas mais violentas liberadas na versão
estendida de Batman vs Superman, o que acabou agradando mais aos
fãs que declararam ser esta a versão que deveria ter sido exibida nos cinemas.
O recente Esquadrão Suicida funcionou como um teste para a Warner
ao usar personagens não muito conhecidos do grande público como Pistoleiro
e Magia junto com Arlequina e Coringa para ver como um
filme com personagens da DC mais violentos se sairia, mesmo com um resultado
confuso e um Coringa abaixo da média foi um sucesso de bilheteria, tanto que
filmes solo da Arlequina e do Pistoleiro estão sendo cogitados, mas dessa vez
pensando em uma classificação mais adulta para explorar essa nova tendência que
vem se formando atualmente. Porém o que muita gente que repercutiu a matéria na
rede não citou foi que o estúdio pensa nesse tipo de produção usando os
personagens que se encaixam nesses perfis, não visualizo filmes do Flash,
Lanterna Verde, Liga da Justiça ou a esperança de sucesso de Mulher
Maravilha sendo feitos com teor sexual e violento para o público
adulto, com classificação acima de 18 anos, não condiz de forma alguma com a
essência desses personagens nos quadrinhos, o recente trailer de Liga da
Justiça me parece sinalizar que a aura pesada de Batman vs
Superman não deverá se repetir nesse filme, focando mais na aventura,
Batman tem até comentários bem-humorados como quando Barry pergunta para ele o
seu superpoder e simplesmente responde: “Sou rico”.
Um caso que chamou muita a atenção foi na série The
Walking Dead inspirada nos quadrinhos de mesmo nome de Robert Kirkland,
quando a sequência da morte de Glenn foi retratada fielmente aos quadrinhos
mostrando sua cabeça arrebentada por Lucille, o bastão de beisebol de Negan.
Tanto os quadrinhos como a série são sangrentos e violentos, no entanto essa
parte que chocou os leitores nos quadrinhos deixou a audiência ainda mais
estarrecida ao ponto da emissora ser questionada quanto à necessidade de uso
tão explícito da violência, o que alguns viram como exagero, outros viram como
fidelidade a obra original, quem teria razão? Como fã dos quadrinhos e da série
devo dizer que tive sentimentos ambíguos, por um lado fiquei chocado com a
realidade dos efeitos da cena e por outro me questionei se foi realmente
necessário, mas se fosse com outro personagem qualquer o impacto teria sido o
mesmo? O fator emocional também conta muito em momentos assim e creio que os
produtores tiveram muito tempo de discussão para decidirem transpor tão
literalmente os quadrinhos para a tela da TV.
Não se pode negar que Logan levou os
filmes de heróis para outro patamar confirmando que a audiência buscava
produtos como Deadpool entre as produções nas telas, no entanto o
uso da violência não deveria ser de forma banal apenas para agradar aqueles que
gostam de ver sangue jorrando ou membros amputados, pois os super-heróis tem a
imagem de ser a esperança de um futuro melhor nos seus mundos e não de serem os
responsáveis por chacinas descabidas, enquanto esse artífice for usado de
maneira inteligente não precisaremos nos preocupar.
Por Giulianno de Lima Liberalli
Colaborador do Planeta Marvel/DC