David
McKean é um artista dos mais renomados da indústria de quadrinhos.
Graças a sua ocupação maior como artista plástico, pouco se tem (fora, é claro,
as inúmeras capas de artigos para o selo Vertigo) de materiais dele como
desenhista. Seu modo peculiar de ver o mundo garante uma aura anárquica,
caótica e até agressiva para as obras que assina, e sua arte sequencial é tão
singular que não combina com tramas normativas ou convencionais. A química de McKean funciona com cabeças pensantes, como
as de Neil Gaiman, e ganha mais um capítulo
interessantíssimo com a tresloucada Asilo Arkham, uma das primeiras
histórias de Grant Morrison com o Homem Morcego.
Um trecho de
Alice, de Lewis Carroll é flagrado, que reafirma o estado
soberano de loucura, e a consequente inexorabilidade da condição. A partir daí
adentra-se na intimidade de Amadeus, o mesmo que dá nome ao asilo, em seu
diário, que demonstra de forma gráfica a nada aplacada realidade do ainda
infante, pelos idos de 1901, ao conviver com uma mãe à beira da loucura.
A mentalidade débil já o assombrava quando pequeno, de modo atroz. A cor
que predomina neste plot é o castanho, diferente do tom grafite que contempla o
Batman, que em sua primeira aparição é mostrado como uma rasura em formato
humanoide, um esboço, que precisava de uma arte-final, e que sofreria este
último tratamento ainda dentro daquele micro-universo.
O Coringa
convida seu nêmese a descer as escadas da mansão rústica, mas o convite é mera
formalidade, uma vez que para o morcego adentrar os portões do Arkham parecia
uma questão de tempo, talvez uma referência de Morrison a
máxima freudiana denominada “retorno do recalcado”, onde – em linguagem popular
– o doente tende a voltar aos seus pecados originais, mesmo os renegados a
muito, além de ser um regresso aos seus traumas.
É notável
que o roteiro segue a dualidade da fórmula de transição entre protagonistas, de
Batman para Amadeus. O ofício e repertório de ambos é muito semelhante, pois
tanto o Detetive quanto o psiquiatra tratam em sua intimidade de insanos, e
ambos vivem a atravessar a tênue linha da saúde mental plena, ou, no caso, o
que mais se assemelhe a isto. Os pacientes, analisados pelo imberbe Coringa
estão em condições ainda mais lastimáveis e penuriosas que o Palhaço, desde
Harvey Duas Caras, que está explorando um campo maior de possibilidades, além
do velho cara e coroa, e que em virtude disso mal consegue conter sua bexiga. A
recuperação dos internos cai na tradição folclórica do local.
A primeira
vez em que o rosto do Batman é contemplado sem que quase todo ele esteja à
sombra, é quando este quebra um pedaço de vidro, para então perfurar a própria
mão, para não se ver capturado pela aura lunática do asilo. O artifício é
tentar esconder-se do perigo não mostrando a face ao maior temor da vida,
reconhecendo que o senso de loucura é mais forte que a resistência do homem por
trás da máscara.
Talvez a
mais plausível posição ideológica seja a do Chapeleiro Louco, que é outra
referência a Lewis Carroll, que guarda a ideia de
que o Asilo é formado pelos pensamentos de alguém, como era o País dos
Espelhos, e que talvez a mente por trás disso, fosse a do morcego – ou até de
sua contraparte narrativa, o fundador.
Um dos
médicos da instituição, Cavendish, foi um dos responsáveis pela liberação dos
presos. Seu motivo seria os escritos de Arkham, que assume a sua condição
lunática, a mesma que tanto negou e reprimiu. Seu entendimento é de que aquilo
seria uma questão hereditária e inegável ao sangue dos seus. Nem mesmo as
precárias condições, que não permitiam ao psiquiatra ter uma pena para
escrever, o impediram de registrar suas lembranças, e logo ele passa a riscar
as próprias unhas para dar vazão ao seu texto profano e sedutor.
Através de
uma artimanha nada usual e pouco correta, o Morcego consegue através de
interferência externa, vencer Cavendish, tomando para si a responsabilidade de
restabelecer a Ordem e a saúde mental daquela sociedade. Seu avatar deveria ser
o mais forte, assim que ele assume a via que finalmente o distinguiria dos
derrotados, que era a loucura finalmente assumida. Assim, ele estaria em pé de
igualdade com os seus semelhantes, afinal.
O mergulho que Morrison e McKean fazem é na intimidade, na parte mais
volátil da psiquê do Batman, expondo-o ao lugar mais sujo e fétido que todo o
seu universo contempla. A soberania do herói só ocorre graças a sua atitude de
abrir mão de suas crenças, entre elas, a de que criminosos são seres
inferiores, supersticiosos e covardes. De fato a maioria é, mas somente a
patuleia. Casos como os do Coringa, Duas Caras, Chapeleiro e Crocodilo provam
que a tese não é tão congruente quanto ele gostaria, e que não há tantas
diferenças entre eles e o paladino. O aspecto pitoresco e tragicômico imposto
pela dupla de autores faz o peso de cada atitude do morcego ser ainda maior e
mais trágico, além de ser uma reimaginação das mais pontuais, pelo quase
ineditismo em assumir a condição de louco que preconiza veladamente o herói
criado por Bob Kane e Bill Finger, num belo quadro expressionista que remete a um tipo de arte
que infelizmente caiu em desuso, e que se diferencia muito da média industrial.
Por Filipe Moreira
Por Filipe Moreira
Fonte: Vortex
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