De tempos em tempos surgem notícias aqui no JUDÃO falando sobre o mercado de histórias
em quadrinhos nos EUA. Basicamente, são informações sobre quem vendeu mais,
quem vendeu menos, quem lucrou, quem está perto de ser cancelado… Ou seja,
fatos importantes, que podem levar a novos direcionamentos para os nossos
heróis favoritos no (ainda) importante mercado estadunidense.
Fatos que, com toda a certeza, serão sentidos depois pelos leitores de
editoras como DC,
Marvel e Image no Brasil
Um pouco de história
Nem sempre foi assim, claro. A venda de gibis nos Estados Unidos já foi,
um dia, tal qual como é até hoje aqui no Brasil. A distribuição era feita para
as bancas, que funcionavam como intermediários. Sim, o jornaleiro da sua
esquina é apenas um intermediário. Ele não compra nada. As editoras cedem
revistas e jornais para ele, que fica responsável pela venda. Caso hajam
compradores, ele ganha uma porcentagem. O que ficar — chamado encalhe — é
retirado pela distribuidora e devolvido com a editora.
Se a tiragem for muito maior que a demanda, é quase certo que esse
encalhe se tornará prejuízo para o editor. Por isso, trata-se de um formato de
negócio bem complicado.
Acontece que tudo isso começou a mudar nos EUA durante os anos 70. As
duas décadas anteriores tinham visto um boom dos quadrinhos, mas as vendas em
banca começaram a diminuir no começo dos anos 70. Na mesma época, começaram a
surgir lojas especializadas na venda de revistas em quadrinhos. Eram
os comic shops.
Phil Seuling, que era dono de comic shop e organizador de convenções,
foi o primeiro a perceber que era mais interessante comprar diretamente das
editoras. Afinal, ele tinha um controle da demanda dos clientes. Assim, ele
poderia pedir as quantidades exatas de cada revistas e aumentar a margem de
lucro (pois não havia a figura do “distribuidor”). Por outro lado, o cara teria
que se organizar: no caso de comprar mais do que o necessário, os gibis
ficariam encalhados na loja dele, o que poderia representar um prejuízo.
Assim surgia o chamado “mercado direto”. Na época, o “direto”
significava que não haveriam mais as distribuidoras, um conceito que acabou se
perdendo — afinal, elas ainda são necessárias.
Antiga comic shop |
Com o tempo, as vendas no mercado direto foram crescendo. Só que foi
apenas no começo dos anos 80 que a Marvel finalmente viu o real potencial desse
mercado. Foi a partir daí que a Casa das Ideias passou a lançar revistas
diretamente para as comic shops e que não sairiam mais nas bancas.
A jogada se provou um sucesso. Tudo porque os quadrinhos não precisavam
mais disputar espaço com outras publicações. Eles tinham uma loja só para eles,
que poderia ser preenchida com um número cada vez maior de gibis. E apesar da
editora ter uma margem menor em cada venda, não existia o risco da editora
morrer com um monte de revistas na mão — o que permitia apostar em personagens
e séries feitas para vender menos, como as graphic novels adultas. Sandman e o
selo adulto Vertigo são filhos diretos
dessa mudança.
Não demorou para inúmeros distribuidoras surgirem nos EUA, se
especializando em receber as solicitações das lojas (que informavam quais
títulos queria vender) para as editoras (que enviavam por meio da distribuidora
as publicações). Não demorou muito para as vendas em banca morrerem e acontecer
um verdadeiro boom de comic shops.
Nos anos 90 sobraram apenas três distribuidoras: Diamond,
Capital City e a Heroes
World. A última foi comprada pela Marvel em 1994, já que a editora
acreditava que ter uma distribuidora própria poderia ajudar nas vendas e nos
lucros. Não deu muito certo. Na segunda metade da década, tantos as grandes
quanto as menores editoras assinaram contrato de exclusividade com a Diamond,
que passou a ser a única a operar no mercado direto.
Como funciona o mercado direto hoje
Depois desse processo, o mercado direto de HQs começou a operar em um
formato bem consolidado. As editoras (incluindo DC, Marvel e Image) informam
para a Diamond quais revistas vão vender em cada mês, os títulos, sinopses e
alguns previews (ou seja, revelam algumas páginas das publicações). Essas
informações são divulgadas em grandes listas cerca de três meses antes da
distribuição, além de serem veiculadas em uma revista da Diamond chamada
simplesmente de Previews, que é lida pelos
donos das comic shops.
Normalmente, são essas solicitações que acabam virando notícia aqui no JUDÃO. É que elas podem
revelar mudanças na equipe criativa, capas bombásticas, sinopses misteriosas ou
até o cancelamento do título.
A partir da revista Previews, os donos das comic shops selecionam quais
revistas querem — e a quantidade que esperam vender. Dessa forma, são os
lojistas que efetivamente COMPRAM as publicações, esperando vendê-las para os
leitores.
Nesse sentido, quem dita o sucesso ou fracasso de uma publicação são os
comic shops. Se eles não apostam em um gibi, o gibi tem poucas solicitações —
e, depois, poucos exemplares à venda. Se os números não sobem, provavelmente a
publicação será cancelada. Muitas vezes pode ser até uma história interessante,
que teria público. Mas esse público nem fica sabendo…
É claro que existem inúmeras nuances nisso tudo. As editoras tentam
desesperadamente impulsionar as vendas no período das solicitações,
principalmente por meio de notícias, entrevistas e comunicados para a imprensa.
Os previews propriamente ditos também ajudam bastante nisso.
Claro, três meses de antecedência é um tempo muito longo, no qual muita
coisa pode acontecer. Por isso existem as chamadas “re-solicitations”, período
mais próximo da publicação no qual o lojista pode pedir mais exemplares das
revistas. Isso acontece muito, por exemplo, quando há uma publicação bombástica
recente, que infla as vendas das revistas relacionadas que virão a seguir.
Há ainda outras “manhas” das editoras. Em casos bem específicos, Marvel
e DC (que tem mais bala na agulha) oferecem a oportunidade das comic shops
devolverem um potencial encalhe. Tal jogada acontece bastante em grandes
crossovers. Sem o risco de perder dinheiro, os lojistas encomendam mais
exemplares e a editora tem certeza que todos os leitores vão encontrar o título
à venda.
E sim, muitas vezes é difícil encontrar os gibis mais populares. Tudo
porque os donos das comic shops são muito conservadores nas solicitações e
porque eles, claro, criaram outras formas de potencializar as vendas. Além de
estimular o boca-a-boca para emplacar os lançamentos, eles reservam as séries
mais procuradas para os clientes que pedem. Dessa forma, tem muito gibi que
está esgotado antes mesmo de chegar à loja.
A parceria entre editoras e comic shops não para por aí. Há toda uma
agenda de eventos anuais entre eles, apresentando os futuros planos das
editoras — na San Diego Comic Con, por exemplo, há painéis exclusivos para
revendedores pela manhã. Também existem eventos especiais. Avengers
vs. X-Men, por exemplo, contou com festas nas principais comic shops
dos EUA, que abriram na noite da véspera do lançamento oficial do crossover
apenas para adiantar as vendas.
Comic shop atual |
New comic book Day
Outra sacada importante do mercado direto é a consolidação do “new
comic book day”. Na realidade, a Diamond distribui os gibis na
terça-feira para serem comercializados no dia seguinte, transformando a quarta
no dia para comprar HQs. Isso dita o andamento de todo o mercado e dos
leitores, que criam uma rotina baseada nesse dia. Produções como Big
Bang Theory mostrando isso com bastante clareza.
E, cara, é realmente necessário ir até a comic shop na quarta-feira. Por
conta do conservadorismo das lojas e das reservas prévias, fica difícil
encontrar as revistas mais procuradas no PRÓPRIO new comic book day. Ano
passado, quando visitei a famosa comic shops Meltdown (que fica em Los Angeles ), passei
por isso: era quarta-feira, mas os principais lançamentos da semana já tinha
esgotado. Foi frustrante.
Para os mais perdidos (que descobriram que precisavam daquele gibi
depois do amigo comentar ou depois de ver algo na internet), há uma segunda
chance. Quando um gibi esgota nas comic shops e ainda há demanda por meio de
pedidos e reservas, os revendedores pedem novas tiragens para as editoras, que
aproveitam a oportunidade para agregar outras capas variantes. Assim, os
atrasados garantem um exemplar, enquanto os mais fanáticos compram novamente só
por causa da nova capa.
Sucesso ou fracasso
Com tanto controle, as editoras sabem previamente se um título vai virar
ou se está indo para o buraco. Dessa forma, ajustes podem ser feitos no meio do
caminho, incluindo mudanças na HQ, uma maior divulgação nas comic shops ou com
novas notícias na internet. Nesses tempos de Twitter e Facebook, vale até um comentário
dos quadrinistas envolvidos. Dan Slott, atual roteirista do Homem-Aranha, já
tuitou diversas vezes que “haviam poucas solicitações” de uma edição específica.
Logo quando o mês acaba, a Diamond divulga o ranking dos mais vendidos e
das editoras. Não são abertos números, mas sim índices. Dessa forma, dá pra
saber, por exemplo, que Guardians
of the Galaxy #1 foi o mais vendido de março e que a Marvel dominou
o mês.
Além disso, a Diamond separa os resultados de duas formas. Na primeira
sabemos quem vendeu o maior número de exemplares, enquanto o outro o ranking é
por dólares. Isso acontece porque algumas revistas mensais custam US$ 2,99,
enquanto outras são US$ 3,99, levando a resultados diferentes. Há também
edições mais caras (Amazing Spider-Man #700 custou US$ 7,99),
encadernados e graphic novels (que têm preços diferenciados).
A Diamond também distribui action figures e colecionáveis criados pelas
editoras e outras empresas relacionadas. É por aí que os bonecos da DC
Direct vão para as comic
shops, por exemplo. Também há um ranking específico para isso.
Apesar da distribuidora não revelar números absolutos, é possível
estimá-los a partir do índice que é divulgado. O ComiChron faz
um ótimo trabalho desse sentido. Por isso, dá pra saber que a mesma Guardians
of the Galaxy #1 vendeu mais de 211 mil exemplares apenas em março.
E, quando se fala “vendeu”, lembre-se: para as comic shops. Se encalhar
algo na loja, não é mais uma preocupação da editora ou da distribuidora. Por
isso as vezes surgem informações de quem uma revista teve mais de 100 mil
exemplares vendidos, mas que são encontrados com facilidade nas lojas…
E as bancas?
Basicamente, a venda de quadrinhos nas bancas morreu nos Estados Unidos.
Banca em 1975 |
Há, claro, alguns exemplares ou publicações que aparecem nelas. Podem
ser edições especiais, ou ainda gibis direcionadas a um público mais infantil
(que não vai tanto nas comic shops). Porém, o grosso disso tudo fica restrito
ao mercado direto. O que é, por um lado, é bem ruim.
As bancas possuem um público muito mais amplo. A pessoa poderia ir lá
comprar o USA
Today, a Time, o que for, e ver
uma publicação do Batman, gostar da capa e levar pra casa. No formato de hoje,
fica difícil trazer esse cara que, por impulso, compraria um gibi e poderia se
tornar um novo leitor.
As comic shops acabam sendo dominadas por um público muito específico.
Claro, o balconista pode sugerir uma revista nova, um personagem novo. Só que
isso acontecerá para o mesmo cara de sempre. Fica difícil ter a compra por
impulso por parte de um novo leitor em potencial.
Isso acaba estimulando as grandes sagas, mortes e tudo mais que vemos
atualmente. Vingadores vs. X-Men, por exemplo, atrai uma atenção nova, já que
são duas franquias de sucesso juntas. É algo que pode fazer um não-leitor sair
de casa, ir até uma loja (que nem sempre é perto) para comprar uma revista. A
morte de alguém importante também funciona da mesma forma.
Esse foi um dos motivos do reboot da DC em 2011. A editora queria
pegar esse cara que não vai até as comic shops nas quartas-feiras e mostrar pra
ele que, a partir daquele momento, existia um fato novo, uma janela que o
permitiria finalmente ler Superman, Batman, Mulher-Maravilha e por aí vai. Era
o momento ideal para começar uma nova rotina.
Isso tudo tem surtido efeito. Depois de alguns anos de marasmo, o
mercado de quadrinhos está crescendo. Só para ficar no exemplo de março, o
ComicChron informa que as vendas foram 20% melhores que há um ano, 29% maiores
que há dez anos e 1% maiores que há 15, quando as editoras estavam em um grande
crescimento. Nos três primeiros meses de 2013, foram vendidos 17% mais gibis
que no mesmo período do ano passado.
Os números consideram apenas as revistas mensais. Nos encadernados, o
crescimento é ainda maior.
Ainda assim, as editoras estão buscando novas alternativas. A DC, por
exemplo, lançou a linha Earth One, com encadernados
que possuem as livrarias como principal foco. Não deixa de ser uma oportunidade
de conquistar um público que nunca pensou em ler HQs.
Venda digital
Outro caminho que está surgindo é a internet. Nos últimos anos cresceu
bastante a venda de gibis digitais para tablets, smartphones e e-readers. O ComiXology se consolidou como
a principal força desse mercado. Além de ter o próprio aplicativo (que traz as
principais editoras), a empresa fornece tecnologia para Marvel, DC e Image, que
possuem aplicativos e sites próprios para venda.
Se por um lado os leitores sentem falta do físico, as editoras só têm
elogios. Sem o custo da impressão e da distribuição, as margens de lucro são
maiores. Também não existe a limitação da tiragem, é possível vender uma
revista para todo o mundo no dia do lançamento e facilita na venda de edições
antigas, já que basta que elas sejam digitalizadas.
Hoje, as edições digitais saem no mesmo dia que as revistas físicas são
lançadas. Apesar disso tudo, não dá para acreditar, ainda, no fim da venda
física, mas sim numa consolidação do digital.
Até porque é bom lembrar: as editoras PRECISAM das comic shops e seus
funcionários. São principalmente eles que convencem os leitores a apostarem em
novas publicações e/ou heróis.
E no Brasil?
Por aqui ainda vivemos no bom e velho tempo da banca. O que não é ruim.
Existem algumas comic shops, mas elas são insuficientes para sustentar
todo um mercado editorial — que também é pequeno, aliás. As bancas, por outro
lado, estão em cada esquina, além de facilitar a atração de novos leitores.
Em todas estas décadas, o Brasil se adaptou da forma que deu. Se não há
espaço para dezenas de gibis mensais em bancas e comic shops, as editoras
criaram as chamadas “revistas mix”, que mesclam em apenas um título várias
publicações estadunidenses. Isso torna possível emplacar HQs que, apesar de
boas, não teriam sucesso sozinhas.
Recentemente a Panini até que tentou apostar na criação do mercado
direto. Foram lançados quatro gibis exclusivos de Os
Novos 52 (o reboot da DC) para as comic shops.
Apesar do sucesso das publicações de banca, as do mercado direto não tiveram
sucesso e foram canceladas.
Bom, ao menos as seguidas tentativas de impulsionar o mercado direto nos
EUA também surtiram efeito no Brasil. Para você ter uma ideia, a DC tem hoje
NOVE revistas mensais por aqui, fora os especiais. É algo inédito na história
da editora.
E é assim que se vende gibi nos EUA — e no Brasil.
Por: Renan Martins Frade
Fonte: Judão
2 Comentários
caramba é um negócio bem mais complicado do que eu pensava ,Engenhoso e que deve dar uma grana boa pros chefões das grandes Editoras(Marvel e DC!). viva os Quadrinhos!!Marcos Punch.
ResponderExcluirTambém gostei dessa matéria. Muitas coisas que eu nem imaginava, e bem diferente do acontece no Brasil.
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