A imagem do “escoteiro americano” é algo que muitos pensam quando referem-se ao
Superman, iconograficamente, ao interpretá-lo como uma figura idealista dos EUA
defendendo seus valores e morais. Até mesmo de forma caricata e cínica como nas
duas minisséries d’O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller. Nesta terceira parte,
falo sobre as obras com certo cunho político e ideológico pertencentes ao homem
de aço.
A Cara do Autor
Na virada do século,
os títulos do Superman reforçaram o tema sobre a importância do personagem no
mundo contemporâneo, onde os seus valores podem ser questionados pelo cinismo
que fazia sucesso nos quadrinhos, muito por parte da influência britânica que
vinha desde Alan Moore nos anos 80. De qualquer forma este tema rendeu ótimas
histórias para o personagem graças ao talento de certos escritores, enquanto
Joe Kelly escreveu a clássica e aclamada “Qual o Significado
da Verdade, da Justiça e do Modo de Vida Americano?” (que marcará presença na próxima parte
do especial) na Action Comics, o seu xará, Joe Casey,
também explorou essa discussão com eficiência em seu trabalho com o Super.
Em uma das
edições de sua fase em The Adventures of Superman,
Casey resolveu trazer de volta o Superman de Jerry Siegel e Joe Shuster, um
super-herói que lutava pelo povo e agia à sua própria maneira, sem restrições.
Mas para tal feito, seu retorno vem como uma materialização dum desejo do
escritor Benjamin Conrad, jornalista que sempre teve orgulho em escrever sobre
o homem simples do campo, pois julgava ser este o verdadeiro valor da grandeza
de sua nação. E por sinal, Conrad é um dos ídolos do repórter Clark Kent, o
Superman que nós tão bem conhecemos.
Conrad está
escrevendo um romance chamado “O Herói dos
Oprimidos”, seu
personagem é nada menos do que a versão original (e primária) do super-herói
kryptoniano, agora vindo ao mundo “real”. Este Superman espalha terror ao redor
do mundo atacando qualquer um que considere estar desrespeitando os ideais
estadunidenses que acredita, como a liberdade e a democracia. Principalmente a
mídia e os governos começam a temê-lo, pois este desrespeita a lei e a ordem
para ajudar a população, devolvendo o poder para ela. Enquanto esses eventos
ocorrem, Clark e Conrad debatem sobre a justificativa de existir um herói assim
nos dias de hoje, não tão “preto e branco” quanto nos anos 30, a clássica
discussão entre velhos e novos valores. De qualquer forma, a “criação” de
Conrad seguiu espalhando suas crenças até o seu último suspiro. Estas que não
serão esquecidas, pois ainda que a violência causada pelo herói seja
questionável, suas lições devem ficar guardadas como parte da construção duma
sociedade a ser repensada e remodelada.
A Maldição do Superman
E olha o Superman de Grant
Morrison marcando
presença novamente no Nerd Geek Feelings, mas agora dessa vez duma forma bem
específica. Falo aqui sobre o Superman da Terra-23 (uma das 52 dimensões que
compõem o multiverso DC) que protagonizou a edição #09 da fase do britânico na
Action Comics, mas que já havia sido criado pelo careca há alguns anos antes
durante a minissérie Crise Final.
Chamado de Calvin Ellis,
que na verdade, como segue a regra, fora o último sobrevivente do Planeta
Krypton, assim como em boa parte das realidades paralelas. A diferença em sua
história é o fato de ele ter nascido na Ilha Vathlo, local onde se encontra a
grande parcela da minoria negra da civilização kryptoniana.
Não é por menos que o escritor o referencie com
Barack Obama, pois sim, Calvin também é presidente dos Estados Unidos da
América como Superman e, dessa forma, Morrison mostra a força por trás do mito
Superman, que possui ideal tão maior que une a todos e qualquer um tem o
direito de sê-lo. Curioso também em uma das sequências de luta que o escritor e
o artista Gene Ha deixam claro suas inspirações também no pugilista Muhammed
Ali, figura importante como representante na luta pela igualdade e nesse
discurso. Mas como Lex Luthor deixa sublinhado no início, essa história não se
trata sobre a luta do preconceito.
A história em si, se
trata sobre o princípio do mito que Superman se tornou, uma ideia perpetrada em
diversos povos através de eras, podendo reinventar-se constantemente.
Encontramos o trio (de um universo alternativo) formado por Lois Lane,
Clark Kent (mas não como Kal-El) e Jimmy Olsen, responsáveis por criar uma
máquina capaz de materializar pensamentos partindo do conceito de tulpa,
que nada mais é do que a personificação física de uma ideia, quando esta
imaginada por várias mentes como um consciente coletivo. Eles estavam fugindo
da ameaça de um Superman “idealicida” (posteriormente o conhecemos como Super-Doomsday),
uma das versões do personagem existentes que viaja através de diversas terras
paralelas para eliminar seus respectivos homens de aço. Sua origem revela-se
como sendo uma tulpa, criada por uma poderosa corporação – que mais tarde se
revela como parte dos planos do demônio da quinta dimensão chamado de Homenzinho (ver mais aqui) -, que inicialmente foi idealizado com
a máquina do trio para seu símbolo tornar-se uma marca a ser consumida através
dos mais variados produtos possíveis. Morrison mostra aqui como ideias que
nascem incrivelmente puras e belas, podem ser corrompidas e banalizadas pelo
espírito capitalista e consumista da sociedade até se tornarem uma contradição
de si mesmas.
Ainda há um
backup (histórias curtas que complementam as edições) escrita por Sholly Fisch,
com os desenhos de Cully Hammer e as cores de Dave McCaig, que discute sobre as
atitudes políticas de Calvin como presidente e super-herói. Aqui, ao lado da
Mulher-Maravilha, ele desmantela instalações nucleares secretas de Qurac, país
fictício pertencente ao Oriente Médio na DC, que muito se assemelha ao Iraque
ou Irã. Mesmo sendo por um bem maior, é questionado sobre o quão legítimas são
suas ações, que mesmo servindo para a proteção de seu país, também ferem as
constituições estabelecidas pela ética da sociedade. Por ser o homem mais
poderoso da Terra, Calvin possui o direito de decidir sozinho o que é melhor
para todos? Questionamento moral que lembra Entre a Foice e o
Martelo de Mark
Millar, que por sinal, é a próxima obra que falarei aqui.
Entre a Foice e o Martelo
Na década passada, a
DC convocou alguns dos principais escritores da época para reformularem o
Superman, entre eles haviam Mark Waid, que escreveu a nova origem do homem de
aço em O Legado das Estrelas (texto aqui), Grant
Morrison, responsável pela história definitiva do personagem chamada Grandes
Astros Superman (que estará presente na última parte do especial) e Mark
Millar. O último escreveu uma minissérie dentro da linha Túnel do Tempo (Elseworlds
em inglês), selo com diversas histórias onde mostram realidades alternativas
originadas de pequenas, mas importantes, mudanças na história do universo DC.
Esta obra de Millar trata-se duma reinvenção ideológica do Superman, pois o
escritor nos conta sobre como seria o mundo caso a nave de Kal-El aterrissasse
no outro lado da cortina de ferro, mais precisamente, na União Soviética.
Através
dessa premissa, Millar faz questão de criar um super-herói ativamente político
e que fosse mais contundente em seus ideais. Sai o sonhador defensor do American Way e entra o herói que luta pelos ideais
de igualdade entre o povo, o homem comum. De início se torna apenas uma figura
idealista que Josef Stalin utiliza
para engrandecer os ideais socialistas, fazendo passeatas, festas e eventos
para apresentar o seu Superman para o mundo. Mas logo após a morte do líder
soviético, o kryptoniano se vê obrigado a assumir o poder do país, sendo parte
da expansão de seu trabalho em prol da segurança e melhores condições para seu
povo, mesmo que sua humildade como garoto do campo tivesse lhe impedido em
pensar nisso.
No outro lado do
mundo, o governo estadunidense está horrorizado não só pela existência dum
alienígena na Terra, mas também por ser um comunista, o que lhes deixavam em
tremenda desvantagem no meio da Guerra Fria.
O gênio Lex Luthor é requisitado pelo governo para procurar um meio para deter
essa “ameaça”. Dominando todos os meandros da ciência de seu tempo e com a
mente voltada para o futuro, Luthor vê em Superman a oportunidade de provar o
verdadeiro potencial da humanidade e que representa o ápice da sua espécie,
através de seu intelecto imbatível. O escritor cuida em demonstrar duma forma
caricata toda a genialidade do personagem, para poder justificar suas invenções
inverossímeis, devido a época. Mas infelizmente, Millar erra na dose em alguns
momentos que não dá para saber se é uma piada ou realmente acredita que achamos
brilhante algumas falas do personagem.
Ao passar de
décadas, os EUA segue falhando constantemente em derrubar o homem de aço
soviético e enfrenta uma forte crise econômica, devido o fato de ter limitado
suas relações internacionais devido ao crescimento da influência do Superman e
seu governo na Terra. Por orgulho, não aceitam se aliar aos soviéticos.
Enquanto a União Soviética prospera com seu líder e “messias” como uma
superpotência. Não há mais fome e desigualdade social, por outro lado, nem
todos veem a situação como a melhor possível e assim surge Batman,
um revolucionário que deseja “libertar” seu povo da opressão do alienígena.
Quando este passa dos limites, Superman toma medidas drásticas e torna seu
regime numa ditadura proclamada. Quem desobedece suas leis e perturba a ordem,
será imediatamente lobotomizado. Curioso como Millar lida com as referências na
história, brincando muito com a possibilidade de inverter conceitos, como ter o
Batman, que sempre foi obcecado pelo controle, representando o caos aqui.
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