Dor. Perder tudo o que lhe é
sagrado, ver sua vida sendo desmantelada lentamente em cada pequeno detalhe,
progredindo até a dilaceração de sua alma. Isso foi o que o que sentiu Matthew
Murdock, o brilhante advogado cego, que mantém uma vida dupla, ajudando pessoas
em tribunais durante o dia; e à noite nas ruas de Nova York, vestindo seu
uniforme vermelho e seus sentidos super aguçados para tentar fazer do mundo um
lugar melhor. Mesmo que haja dor.
Essa história foi acertadamente
chamada no original de “Born Again” (“Renascido”), mas ficou famosa no Brasil
pela alcunha de “A Queda de Murdock”, por motivos óbvios, mas também caberia a
ela outros títulos, os quais não vou citar para não entediar o leitor, dizendo
apenas que tudo o que me vem a cabeça quando penso nessa história é a palavra
“perdão”.
Algo como “A Vitória do Perdão”,
sintetizaria bem, mas seria um título muito brega, então que bom que não foi
usado. E mesmo assim, ainda teríamos muitas outras possibilidades de
títulos. A história percorre profundamente muitos sentimentos, e arranca o lado
humano dos personagens, deixando-os expostos, frágeis, verossímeis.
O uso do personagem Ben Urich é
notável. O repórter querendo fazer o que é certo, escrever a matéria que pode
limpar o nome do amigo e denunciar o maior gangster da cidade. Mas então, vem
as ameaças, não só para ele, mas para pessoas próximas, sua família. Ele entra
em um estado de paranoia, acredita estar sedo constantemente observado e talvez
esteja mesmo. Essa batalha interna não foi mostrada em páginas duplas com
atletas em roupas coloridas e armas gigantescas. Mas foi um dos mais
importantes combates da HQ. E no final, quem vence? Medo ou determinação?
Quem poderia culpar Urich por sua
fraqueza, ou mesmo afirmar que teria tanta retidão de caráter?
Nada é desperdiçado, nenhuma vírgula
é em vão. Desde
o primeiro passo errado dado por Karen Paige, ex-secretária, ex-amante de Matt,
temos a sua humanidade visível, em carne viva, com todos os seus nuances de
egoísmo, medo, arrependimento e amor. E mesmo depois de toda a cadeia de
acontecimentos catastróficos, em seu reencontro com Matt Murdock, tudo o que
ele tem a oferecer a ela é perdão.
Embora a história toda seja repleta
de momentos climáticos, essa cena em especial foi a de maior peso pra mim. E
isso foi o que mais me marcou na personalidade de Murdock, e que me faz pensar
no quanto é preciso ser verdadeiramente nobre e heroico para perdoar. Só por
isso, aprendi a admirar ainda mais o personagem, e até mesmo a me perguntar se
eu seria capaz de tal ato de generosidade. Eu gosto de pensar que sim, mas
sinceramente, eu não sei.
Houve um tempo em que Frank Miller
flertava com as palavras, dançava com elas em um ritmo impecável, unindo poesia
e situações extremas. Dor e prazer. Embora muitos dos outros autores contassem
excelentes histórias, a narrativa de Miller costumava ser um deleite à parte.
Quando eu era adolescente, tive vontade de ler o texto de Miller em voz alta
para algumas pessoas, só para que elas entendessem que quadrinhos não eram só
artigos infantis ou sem conteúdo. Aquilo era literatura gráfica acontecendo, e
o garoto lendo aquele gibi não era um alienado… ele estava absorvendo cultura.
Mas eu nunca li nada do Miller em
voz alta pra ninguém. Nem do Alan Moore, ou Neil Gaiman, ou tantos outros de
que tive vontade. Que seja.
David
Mazzucchelli, o ilustrador da obra é um artista tão completo e versátil que
fica difícil traduzi-lo em poucas palavras. Quem melhor para retratar a
realidade nua e crua imaginada por Frank Miller, façanha que repetiram em
“Batman: Ano Um”? Ele não é um desenhista constante, embora tenha
realizado muitos trabalhos e todos memoráveis e dignos de nota. Sua carreira
foi mudando progressivamente com o tempo, afastando-o dos heróis fantasiados e
levando-o para obras mais autorais, cujo ápice foi seu trabalho impecável na
criação da Graphic Novel “Asterios Polyp”,
uma obra extraordinária cuja resenha pode ser lida Aqui.
Mas voltando ao Demolidor, algo em
“A Queda de Murdock” parece querer nos mostrar as coisas que realmente valem à
pena. Nos mostrar que mesmo que o mundo desabe à nossa volta, aquilo que nós
somos pode permanecer firme, e nosso espírito ainda que ferido, pode cicatrizar
e assim encontrar forças para recomeçar do zero. Renascer. Não acho que
Miller tenha deixado algum tipo de “moral” a ser entendida, mas o recado de
Matt Murdock foi dado.
Se personagens de quadrinhos podem
ser tão humanos… por que nós não podemos?
Fonte: O Santuário
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