Como
o texto presente em sua contracapa deixa bem claro, Batman: Xamã é outra daquelas histórias que
complementam Ano Um,
a clássica reformulação da origem do vigilante de Gotham concebida por Frank Miller e David Mazzucchelli.
Nela acompanhamos o herói em início de carreira envolvido numa investigação
sobre um assassino ligado a uma seita de fanáticos religiosos que realizam
sacrifícios humanos em Gotham City, enquanto ainda está aperfeiçoando suas
técnicas e métodos de combater o crime.
A
primeira atuação de Bruce como Batman em Xamã,
retratada por Edward Hannigan,
é visualmente bem emblemática. E ainda que ele ganhe mais confiança quando
passa a usar o uniforme, são várias as vezes que O’Neil faz questão de retratar
o Batman discutindo com Alfred sobre o caso investigado enquanto o mordomo faz
curativos para novos ferimentos que o vigilante sofreu durante a noite em seus
confrontos com criminosos.
O mistério que
O’Neil constrói ao longo da narrativa é bem intrincado, e do tipo que exige um
bocado da atenção do leitor. Pistas visuais são espalhadas, muitas vezes sem
que percebamos numa primeira leitura, e revelam-se relevantes para solucionar
os mistérios mais adiante. Com isto o autor explorou muito das capacidades de
investigação, disfarce e espionagem do Batman, que aqui conta com métodos bem
mais tradicionais, e é menos dependente de altas tecnologias, como vem
ocorrendo nas histórias atuais. É tudo bem mais “pé no chão”: ele usa Alfred
como motorista; monta seu primeiro laboratório criminal num dos cômodos da
Mansão Wayne; e o primeiro uniforme que ele usa é costurado quase que de
improviso pelo mordomo.
Outro aspecto
interessante de Xamã é o paralelo traçado por O’Neil entre a missão do Batman e
um mito indígena sobre a origem das asas dos morcegos, que revela-se uma
alegoria do papel do herói em Gotham: soprar para longe a doença/criminalidade
que acomete a cidade. Esta é uma das primeiras conexões criadas entre a origem
do Batman e um mito indígena, que anos depois foi reimaginada por Grant Morrison durante as peripécias temporais do Homem Morcego na
minissérie O Retorno de Bruce Wayne.
E
como um autor que gosta de levantar discussões sociais com suas obras, O’Neil
aproveitou a participação de índios norte-americanos na história para
falar um pouco sobre a interferência do “homem civilizado” na cultura de uma
tribo que vive no Alasca. Na trama, Bruce Wayne é indiretamente responsável
pela desgraça que ocorre ao xamã que salvou sua vida no início da história,
graças a uma pesquisa financiada por ele na região. A culpa que sente por isto
acaba sendo o impulso que Bruce precisava para seguir em frente com sua missão,
e fazer justiça por aqueles que prejudicou.
Alfred é outro
fator motivacional no período da vida de Bruce retratado em Xamã, como fica bem evidente neste
diálogo da página 78:
Bruce: “Talvez devesse admitir que ele é melhor do que
eu. Talvez existam centenas como ele.”
Alfred: “Posso sugerir que essas dúvidas, além de pouco características, são inúteis? Beiram a autopiedade.”
“Antes que abandone suas atividades noturnas e se resigne a uma vida de sanidade, por que não repensa suas teorias?”
Alfred: “Posso sugerir que essas dúvidas, além de pouco características, são inúteis? Beiram a autopiedade.”
“Antes que abandone suas atividades noturnas e se resigne a uma vida de sanidade, por que não repensa suas teorias?”
E ainda assim,
quando Alfred consegue convencer seu patrão a não desistir, o mordomo se mostra
dividido quanto ao resultado que deseja para a busca de Bruce:
“Desejo-lhe sorte. Mas confesso… não tenho certeza se
isso significa que espero seu sucesso ou fracasso.”
Também chama
atenção uma frase que Bruce diz a Alfred enquanto exploram a futura Batcaverna:
“Morcegos, medo, escuridão, meu pai… É como se os
elementos fora do meu controle conspirassem pra me transformar no que sou.”
Este trecho
pode ser interpretado como outra das possíveis referências usadas por Grant Morrison para elaborar sua complexa mistura de
conspiração e destino que geraram Batman, que ele extrapolou de maneira
inédita em O Retorno de Bruce Wayne (mais detalhes sobre ela neste artigo).
Os desenhos de Edward Hannigan são bem discretos, e trabalham mais a
favor da história do que em chamar a atenção para si. Sua narrativa visual
é sóbria e precisa. Somados à arte-final de John Beatty e às cores de Richmond Lewis, os
traços de Hannigan fazem a arte de Xamã referenciar o conjunto artístico de Ano Um. Por
vezes Hannigan parece emular o traço de Mazzucchelli em Ano Um, mas sem que
seus desenhos pareçam meras cópias dos de seu antecessor. E arrisco dizer que a
paleta de cores usada por Lewis foi sutilmente referenciada por FCO Plascencia nos dois primeiros arcos da saga Ano Zero, de Scott Snyder e Greg Capullo (mais sobre ela aqui),
pois há em ambos, assim como em Xamã, uma
predominância de verdes, azuis e púrpuras (que, vale apontar, são cores
relacionadas ao Coringa,
embora ele não apareça em nenhuma das histórias).
Outro
aspecto da arte que chama atenção são as capas de cada um dos capítulos,
desenhadas por Hanningan e pintadas por George Pratt. Cada uma delas mostra uma
máscara/face que se parte, revelando outra atrás de si, servindo de metáfora
visual para as camadas de personas e mitos que se acumulam em torno do
Cavaleiro das Trevas.
Batman:
Xamã pode não ser
uma história muito aclamada, além de ser pouco conhecida, mas isto não
desmerece a obra. Pelo contrário, é um trabalho bem cuidadoso, que ao mesmo
tempo que desmistifica os primeiros passos do herói, torna-o uma extensão,
evolução e, acima de tudo, uma personificação de um mito mais antigo que ele
próprio. Como o subtítulo e a história sugerem, o Batman é o Xamã que Gotham
criou para curar-se dos crimes que ameaçam consumi-la. Sem o Homem Morcego, a
violência criminal entraria em metástase, e a cidade já estaria estágio
terminal.
Por Rodrigo F. S.
Souza
Fonte: Nerd Geek
Feelings
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